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A Ponte

Desde os tempos remotos o ser humano tenta entender como tudo é tudo, e num determinado momento chega um exemplar da espécie humana em uma ponte no meio de lugar algum.

Ponte simples de madeira com cipós, parecia firme e segura a ponto de aguentar uma mula na travessia. Mas o humano em questão - chamaremos este exemplar da espécie de José - José, travou as pernas ao chegar à entrada, deu passos laterais e posicionou-se a observar o comportamento da ponte.

Passaram-se dias e vimos que José conseguiu uma barraca, um fogareiro e um pouco de comida, talvez com os que passam a ponte diariamente, poucos, em silêncio, carregando coisas. Teria alguém ficado com pena da imagem daquele semelhante que estava sem-teto, ou ele teria dinheiro pelo qual trocou a barraca, os mantimentos e o pequeno fogão? Avançamos algumas dezenas de dias.

José agora tinha um caderno, anotações de todos os tipos, inclusive uns desenhos que podíamos interpretar como modelos da ponte. Sol, chuva, vento, podíamos ler palavras relacionadas ao tempo no pé desta folha. Havia também uma espécie de plano no canto da barraca, debaixo de algumas pedras todas de tamanho semelhante, o que José pretendia?

Chegamos bem cedo para não perder a eventual execução do plano de José. Como previsto, pegou o papel, que supomos ser a teoria da prática que seria executada, para, quem sabe, atravessar a ponte. José caminhou com aparência confiante até a beirada, esperou a mulher terminar de atravessar e começou a atirar pedras em locais distintos do trecho de travessia. Notável pontaria, as pedras colocaram-se simétricas meio para cá e para lá. E finalmente o momento em que esperávamos desde que nos postamos a observar José: a travessia.

Um pé, depois o outro. Dentro da ponte estava José, que balançou no balanço da ponte. E caminhou lentamente. Saboreou cada passo e cada centímetro cúbico de ar que lhe escorregava a face e também olhou para baixo, sem, no entanto, sentir náuseas, e por tudo que esperou, saboreou como ninguém a travessia, e vale destacar que deixou seu plano voar das mãos com destino incerto.

Próximo do meio da ponte, José viu que lá vinha uma mulher e sua mula. Seu estômago se fez era glacial, seu sangue ferveu, o coração não aguentaria, pensou ele. Olhou para o plano voando longe, tinha uma alternativa teorizada a respeito, talvez, precisava lembrar o que a situação demandava, não poderia apenas voltar, estava em dúvida no que resultaria tal ação, isso estava estampado na sua face desesperada. A mulher havia chegado à frente dele e falava algo inaudível. José fez uma pequena aproximação do cipó da lateral, a mulher puxou a mula que passou raspando no pobre medroso. Estava novamente no caminho como antes do incidente e resolveu continuar os passos.

Encontrou o fim da ponte e teve dúvidas para sair dela. Outra mulher poderia aparecer com sua mula, pensou nisso e firmou seus pés na terra do outro lado da ponte. Fez a travessia, José conseguiu, e ficamos orgulhosos da conquista de um ser humano qualquer em lugar algum. Fomos nos afastando enquanto José apreciava o outro lado. O tempo desenrolou rápido, pois já não tínhamos interesse em fatos breves.

A surpresa acometeu-nos quando olhamos por um último instante para José, estava voltando para a saída da ponte, agora lhe era entrada. Pôs os pés a passar madeira a madeira, chegou à sua barraca.

Por dias, José tramava algo em seu caderno. Mas não nos restava tempo para cuidar desta missão, era outro desafio deste ser humano que cabe a outrem cuidar. Tchau José.

Após cinquenta anos uma brecha permitiu uma visita ao local da ponte. Muitos seres humanos lá estavam a deslocar-se entre prédios do lado de cá e de lá. A ponte agora era feita de pedras e no local da barraca de José havia uma grande casa. Estava José dentro dela a tratar com outros homens de negócios referente a melhoramentos na ponte. Segurava um caderno aberto nas últimas folhas, aquele velho caderno que havíamos acompanhado José a escrever, e podíamos ler algum plano, e concluímos o que realmente foi a tarefa de José naquele local, naquela ponte.

José levou centenas de dias para estudar a ponte, copiou um trecho da sua lista de coisas a serem checadas naquele papel que carregou na primeira travessia, entendeu todo o funcionamento daquela remota região de lugar algum, escreveu no seu caderno planos para construir uma grande cidade em volta da ponte, o fez por cinquenta anos. Sabíamos que José faria algo da sua vida, sabiamos que naquela barraca José esperava para fazer alguma coisa, mas jamais pudemos imaginar, sequer propor, que este humano poderia, ter sonhos maiores do que si próprio.

créditos das imagens: tuppus, Gaetan

2008-10-20T19:38:05.000Z