Category: short stories

  • Lloyd Hoyt

    Trabalhei por quase uma década em uma agência da qual você jamais ouviu falar. Uma agência especial. Uma agência de experiências. Experiências incomuns para pessoas super-ricas. O que fazíamos? Bem, são muitas as histórias que posso contar. Hoje eu quero falar de um dos nossos clientes, o Sr Lloyd Hoyt.

    Quando Lloyd nasceu já tinha em seu nome cinco contas bancárias em cinco diferentes paraísos fiscais. Em cada uma das contas uma soma infinita de dinheiro. Teve uma infância esquisita em um internato que mais parecia uma seita. Aos 16 anos de idade, assumiu uma subsidiária da Hoyt, companhia da sua família. Aos 21 assumiu o cargo de CEO do grupo. Aproxima-se dos 40 anos e tem convicção de que viverá pelo menos 120.

    Como definir Lloyd? Bem, é fácil. Sovina.

    Sob o comando de Lloyd, a empresa Lloyd Hoyt (fundada pelo seu tataravô) expandiu suas operações para quarenta e três países. Especialmente seu braço de transportes e maquinário pesado. Conduzindo sua equipe com mão de ferro, Lloyd dizia com todas as palavras que deveriam sempre pagar menos e exigir mais dos funcionários. Paguem o menos possível! Explorem estes cachorros! Palavras dele. Orgulhava-se por ser conhecido como um explorador do terceiro mundo.

    E por que Lloyd fazia isso? Bem, ele tinha prazeres peculiares.

    Existe um restaurante nos confins gelados da Finlândia que serve a carne de um boi especial. Este boi tem uma vida melhor que a de noventa e nove porcento da população mundial. Palavras do proprietário. Nossos bois recebem um nome quando nascem, e até 25 minutos antes de chegarem no prato dos nossos clientes eles são massageados e beijados ininterruptamente. Então os matamos com um método mais humano que a morte mais humana que existe. É tão incrível que o boi não percebe que morreu. Ele continua a pensar que está vivo. Acreditamos nisso. Acreditamos tanto que o boi continua vivo, que esta é a única carne vegana de todo o planeta. (Gesticulando no ar, exaltado).

    Um bife deste tipo custa US\$ 60,000. “Deste”, não. Estamos falando de William Shawn Hart, nascido no dia 13 de março de 2016. Filho de Leonard Hart e Alexia Mavica Stein. Comidos, respectivamente, por, Bïmayo Brïun (ditador asiático) e Steinv Vitriovich (bilionário russo).

    E para beber? Lloyd sabia exatamente qual era o melhor acompanhamento para este bife. Um bom vinho romano.

    Quando os arqueólogos fizeram a incrível descoberta de milhares de garrafas de vinho romano, alguém em algum lugar os mandou calar. Nenhum estudo pode ser publicado. Os vinhos não iriam para museu coisa alguma. Seriam vendidos a quem pagasse mais.

    Por módicos US\$ 250,000 cada garrafa.

    É claro que análises químicas comprovaram que se tratava de um líquido impróprio para consumo humano. Mas a singularidade daquele produto atraia mesmo assim os curiosos super-ricos que não tinham onde enfiar seus dólares.

    Descobriram que o vinho romano causava dores de cabeça intensas e vômitos. Um dos associados donos do lote achou que o empreendimento não funcionaria. O outro sócio, ficou calmo e rotulou a bebida como uma experiência mística que somente o vinho romano poderia propiciar. E dobrou o preço de cada garrafa.

    É para comer o boi Willian, enquanto degusta vinho romano, que Lloyd Hoyt explora o terceiro mundo. Sem dó e sem remorso.

    Ao chegar no restaurante, Lloyd foi recebido com pompa. Três músicos faziam soar alguma coisa de Handel no ambiente enquanto o maître dirigia Lloyd para a única mesa. A mesa ficava no centro do pequeno salão, iluminada por um spot único de luz.

    Podemos começar? Indagou o maître. Lloyd fez que sim com um gesto de cabeça. Uma tela rolou silenciosa na escuridão em sua frente. A luz brotou nela. Passava um filme com fotos da vida do boi Willian Shawn Hart. Os músicos continuavam.

    O filme terminou com um texto em holandês em que se podia ler — se você soubesse holandês — ”obrigado por me comer”. No fundo uma foto do alegre boi, produzida na manhã daquele mesmo dia. A tela subiu.

    Dois garçons se aproximaram. Um serviu o bife do boi William. O outro serviu o vinho romano.

    O maître se aproximou em seguida e detalhou que ao boi William havia sido mostrada a foto de Lloyd, e que William sorria ao vê-lo. O sommelier veio em seguida, para explicar sobre a origem do vinho de 1300 anos.

    Lloyd Hoyt comeu e bebeu. Alguns minutos depois estava vomitando graciosamente na vomitadeira de ouro que o garçom segurava ao seu lado. Terminava de golfar, e então outro garçom puxava a toalhinha bordada com detalhes em ouro e limpava a beirada da boca dele.

    No outro dia, Lloyd estava no seu escritório. Tinha uma reunião importante, que marcara para exigir de seus diretores um aumento na margem de lucro, nos países para os quais recém haviam expandido as operações.

    Como eu sei disso? O próprio Lloyd me ligou depois desta reunião. Agradeceu pela reserva do restaurante, que eu havia feito. William estava uma delícia. O vinho romano me trouxe vômitos incríveis. Foram suas palavras. Reserve-me outra experiência para o próximo final de semana. Ordenou.

    Havia duas novas opções para Lloyd:

    Explodir Icebergs no Ártico ou Caçar Humanos na Tundra.

    O que você escolheria?

    2018-07-18 10:39:53

  • Sistema

    Dona Adriana morava sozinha e todos os dias sofria de saudades do filho que fora viver na Europa. Havia quase três anos que ele se mudara em busca de uma vida melhor. Dona Adriana, viúva, ficou triste quando ele foi, teve um episódio grave de depressão. Ficou seca e enrugada igual uma uva passa. Um dia conversava no portão com sua vizinha, e aprendeu que poderia matar um pouco da saudade do filho de uma maneira mais conveniente: – Por que a senhora não liga pela internet? Dá para ver ele por vídeo. Vocês se veem e conversam como se ele estivesse na sua sala. A senhora tem computador, né? A senhora tem internet? – Ai minha filha, sabe que eu já sou velha. Não entendo destas coisas. Internet. Celular. Não é pra gente como eu. O computador só tenho porque é do Ricardo e ele não quis levar quando foi embora. – Mas eu te ensino. Juro que a senhora vai gostar. É bem fácil. A senhora tem internet né? – Não tenho minha filha. Ricardo tinha. Mandou desligar quando foi. – Mas assim. Eu ajudo a senhora e instalamos internet e vai poder falar com seu filho sem gastar muito. Vai pagar só a mensalidade da internet. Dona Adriana dava sinais que estava perdida na conversa. Sorria e balançava a cabeça concordando com tudo. Extremamente perdida. Porém encantada com a ideia de olhar o rosto do filho, nem que fosse pela tela do computador. A vizinha trabalhava em casa produzindo doces e salgados para festas de casamento. Sempre que sobrava um tempinho trazia uns mimos para Dona Adriana. Tinha saudade da sua própria mãe e tratar bem a vizinha aplacava um pouco essa saudade. – Agora eu tenho que terminar uma entrega mas a tarde eu tenho um tempinho para ver isso com a senhora. Cada uma se recolheu em sua casa para mais tarde encontrarem-se na sala de Dona Adriana. A vizinha com toda calma do mundo ligou para o atendimento da operadora de telecomunicação. Música. Espera. Uma voz gravada pedindo o número do documento. Para contratar um novo serviço, digite 1. Para receber a sua fatura, digite 3. Para manutenções já programadas, digite 5. Para outras opções, digite 0. Apertou o número um do telefone, um tom digital soou. Instantes se passaram. Agradecemos a sua ligação, aguarde mais um instante que já iremos lhe atender. Dizia a moça simpática da voz gravada. Mais espera. Enquanto esperavam, Dona Adriana se levantou, foi até a cozinha, ligou o gás do forno, pegou a caixa de fósforos e então acendeu. Percebeu que a vizinha olhava em sua direção, sentiu vontade de explicar mesmo que aquela nem tivesse feito a pergunta. – Estragou meu fogão. Só acende no fósforo. Vai um chazinho? – Ah. Eu peço pro meu marido arrumar pra senhora. Ele arruma qualquer coisa! Eu aceito um chá, sim. Atenderam a vizinha. Ela disse que queria ligar a internet na casa da Dona Adriana. Passou os números de documentos. Escolheu o plano mais baratinho. Mais espera. O sistema está lento, senhora, pedimos desculpas. Tudo bem, respondeu já impaciente naquela ligação que já se aproximava de dez minutos. Trocou o telefone de mãos, para a esquerda, porque a orelha direita já estava cansada. Já estou concluindo, senhora. Tudo bem, mais uma vez respondeu. Dona Adriana depositou as duas xícaras de chá de camomila na mesa. – É de camomila. Deixa bem calma. Eu tomo todos os dias para minha pressão alta. – O cheiro está ótimo. Pronto senhora, o procedimento está completo. A frase saiu do telefone para puxar a atenção da vizinha. Ok, ok. Mais alguma coisa em que eu possa ajudá-la, senhora? Nada não, respondeu. – Olha só Dona Adriana. Eles vão vir aqui até sexta-feira para instalar para a senhora. Depois que eles virem eu ensino a senhora a falar pelo computador com seu filho. Está bem? – Muito obrigado, minha filha. Agora tome seu chá antes que esfrie. Passou o resto daquela quarta-feira e toda a quinta-feira. Na sexta-feira de manhã, Dona Adriana ouviu um barulho na frente da sua casa e foi curiosa até a janela, puxou a cortina e viu um homem dependurado no poste. Deve ser a internet, pensou. Fez seu chá. Esperou na mesa. O homem tocou a campainha. Dona Adriana o recepcionou. – Oi, meu filho. – Vim instalar a internet para a senhora, posso entrar? – Entre, está aberto, sem cadeado. Não tem cachorro. O homem se aproximou da porta e pediu licença para entrar. – Onde a senhora quer que eu coloque o modem? – Ai, meu filho. O que que é isso? Eu não entendo nada de computador. Foi minha vizinha que pediu a internet para eu falar com meu filho. Meu filho foi morar na Europa, sabe. Eu falo com ele pelo telefone mas é caro para ligar todo dia. A vizinha me contou que pela internet é de graça. Não vendo fim na explicação da senhorinha, o homem a interrompeu. – Onde fica o computador? Eu coloco perto dele e tudo certo. – Ah. Entre, entre. É lá na sala. Foram pelo pequeno corredor que passava pela porta da cozinha, pelo corredor dos quartos e terminava na sala. O homem se pôs a arrancar tomada, puxar fios, cortar, remendar, pregar peças umas nas outras. Dona Adriana olhava, desconfiada. – Cê quer um chá, meu filho? – Não, senhora. Muito obrigado mas eu estou meio com pressa. Tenho muita instalação para fazer hoje. O homem ligou o computador, fez um teste para se certificar que a internet estava ligada e funcionava. – Pronto, senhora. Agora é só surfar na rede. Dona Adriana não soube como responder. Só agradeceu e acompanhou com os olhos enquanto o homem juntava suas tralhas. Ele se foi e deixou o computador ligado. Dona Adriana nem sabia como desligar a máquina, que ficou lá, iluminando a sala escura – as cortinas viviam bem fechadas naquela casa. Foi no final da tarde de sábado que a vizinha apareceu. Bateu palmas no portão e foi entrando, conhecida que era. Dona Adriana apareceu na porta. – Ai minha filha, que bom que você veio. O homem deixou a internet ligada aqui. Eu nem desliguei porque eu não sei mexer nessas coisas. Foram até a sala, onde o computador estava ligado. A vizinha puxou uma cadeira e sentou na frente do computador. – Vou instalar um programa para a senhora falar com seu filho. Dona Adriana ficou calada. Não sabia o que era instalar e não sabia o que era programa. Quando tentou imaginar o que era instalar um programa, sua mente perdeu o fio. – Pronto. Até achei ele. Deixei o nome do Ricardo aqui, é só a senhora clicar. Venha ver. Dona Adriana arrastou uma cadeira e sentou ao lado de sua vizinha. Estava com a atenção ligada no máximo. Queria muito aprender como fazer aquilo, se é que iria funcionar essa coisa de ver seu filho pela internet. Então o rosto de Ricardo apareceu na tela. Dona Adriana sentiu um arrepio no corpo todo. Levou ambas as mãos a boca num gesto de incredulidade. – Meu filho! Ricardo! Como você está, meu filho? – Quase gritava, como se fosse necessário falar muito alto para que a voz viajasse por toda a internet e chegasse lá do outro lado do mundo, na Europa. – Oi, mãe! Que bom ver a senhora! Quer dizer que agora está conectada por aí, é? Que coisa boa! A vizinha cumprimentou Ricardo, contou que havia ajudado a mãe dele com a instalação da internet. Ele agradeceu e disse que ficava realmente mais feliz em saber que sua mãe tinha uma vizinha tão querida com quem contar. Ela pediu licença e disse que voltaria a sua casa. Meu marido está me esperando, temos uma festa de criança para ir. Tchau, Ricardo. Até logo, Dona Adriana. Sem tirar os olhos da tela, Dona Adriana se despediu da vizinha e voltou a falar com o filho. Falaram por meia hora. Se despediram e ela disse para ele ligar sempre que pudesse. – O computador vai ficar ligado aqui para você me ligar a hora que quiser, meu filho. Eu te amo. E vê se se cuida que aí tem muito terrorista. Eu fico preocupada. A ligação terminou. Dona Adriana foi até o fogão, ligou o gás, abriu a gaveta, pegou os fósforos, ligou o fogo, pôs a chaleira. Fez seu chá de camomila e sentou-se no sofá, mas olhando para o computador. Estava tão feliz com a novidade. Meses se passaram. O medo de Dona Adriana com aquela máquina diminuiu na medida em que se sentia agradecida por poder ver o rosto do seu filho de quem tanto sentia saudades. A vizinha vinha pelo menos uma vez por semana e ensinou algumas coisas básicas. Dona Adriana aprendeu a desligar e ligar a máquina (mas ainda deixava ligada desde que acordava até a hora de dormir – Ricardo pode ligar a qualquer momento, ela pensava). Também aprendeu a ler as notícias, e pesquisar sobre sonhos e simpatias. Aos poucos se tornava mais íntima da tecnologia. A internet é uma maravilha, começava a pensar. Julho chegou, e com ele a friaca do inverno. Dona Adriana tinha seu ritual ao acordar. Lavar a cara, esquentar água, fazer chá, comer um pedaço de cuca, e sentar na frente do computador para ler as notícias do dia. Mas nesse dia especialmente frio, quando clicou para abrir a página da internet, as coisas não apareceram como deveriam na sua tela. Clicou novamente. Nada. De novo. Nada. Desistiu de insistir e viu no centro da tela alguma coisa escrita. O recurso buscado encontra-se inacessível ou sua conexão com a internet não está funcionando. O que será que é isso? Depois de uns minutos decifrou o texto: sua internet tinha parado de funcionar. Imaginou que se tratava de algo passageiro. Levantou da cadeira e foi se ocupar com outras coisas. No fim da tarde voltou, fez o mesmo procedimento e a mesma mensagem aparecia. Lembrou do aparelho que o homem da internet havia instalado, estava no chão ao lado da mesinha em que ficava o computador. Olhou para ele. Ainda piscava. Quem sabe amanhã funcione, imaginou. No outro dia, o mesmo problema. Clicou mais forte no mouse. Nada. Ficou irritada, mas o que poderia fazer? Desistiu de tentar e se deu conta que teria que esperar sua vizinha voltar de viagem para lhe ajudar com isso. Dona Adriana passou aquela semana irritada. Estava acostumada a ver suas coisas na internet. No sábado ficou especialmente contrariada porque havia sonhado com um corvo muito grande e parrudo. O corvo grasnava num volume ensurdecedor. E atacava sua casa. Ela sentia muito medo. O que será que significa sonhar com corvo? Maldição de internet, praguejava. A ela restava voltar para a televisão. No sábado a noite ligou para ver o jornal. Imagens de pessoas correndo, um incêndio. Aumentou o volume.

    … o governo disse que vai prestar assistência às famílias das vítimas. O chefe da polícia local, em entrevista coletiva, informou que investigadores estão perseguindo algumas pistas deixadas pelos suspeitos dos ataques. Mais uma vez o medo toma conta de Paris, que se vê acuada diante de outro ataque pavoroso contra inocentes indefesos.

    Dona Adriana de súbito sentiu seu coração palpitando forte. Ricardo. Ele está em Paris. Meu Ricardo. Meu Deus. Começou a chorar. Sentiu uma tontura. O remédio da pressão. Levantou se apoiando no que podia, no braço do sofá, na estante, na mesa. Finalmente chegou até a gaveta com o remédio, tomou duas pílulas. Se sentou na cadeira. Ricardo. Ricardo. Ricardo. O medo lhe apertava a garganta. Começou a chorar mais forte. Olhou em volta, cadê o telefone. Foi se apoiando até a mesa de centro na sala. Pegou o telefone sem fio. Olhava o papel colado na base do aparelho e discava os números. Errou duas vezes e ouvia uma voz automática dizendo que a ligação não poderia ser completada. Finalmente acertou. Mas a mesma mensagem. Discou novamente. A mesma mensagem. Então se lembrou que na última vez que havia falado com Ricardo pela internet ele disse ter perdido o telefone celular e que só poderia comprar outro no final do mês quando recebesse o salário. Mais choro. Soluços. Dona Adriana ficou desesperada. Só conhecia sua vizinha que podia lhe ajudar, mas ela estava viajando. Sentou resignada no sofá e se pôs a acompanhar as notícias do atentado terrorista. Dormiu ali mesmo no sofá, com a televisão ainda ligada. Um pastor gritava algo sobre um demônio. Ela acordou assustada. Sonhara com Ricardo, que a chamava e ela respondia mas sua voz não saia da sua boca. Ela tentava falar, gritar, e não conseguia. Se levantou e procurou o relógio da cozinha. Não chegava a marcar cinco da manhã. Fez seu chá, tomou seu remédio da pressão. Sentada na mesa, lhe veio a ideia de ligar para o homem da internet. Procurou numa estante, depois na outra, e finalmente encontrou a caixinha que o homem havia deixado. Abriu e revirou os papéis em busca de um número. Num dos selos pode ler Atendimento ao Cliente. Discou aquele número. Música. Uma voz gravada pedindo o número do documento. Dona Adriana não estava com seu documento em mãos. Então colocou o telefone sobre a mesa e foi até a gaveta da estante. Encontrou seus papéis e os trouxe para o sofá, depositando ao seu lado. Escolheu sua velha identidade. Pegou o telefone. Um tom de ocupado. A ligação havia caído. Ligou novamente. Música. Uma voz gravada pedindo o número do documento. Dona Adriana com o documento no seu colo, olhava para ele e digitava o número, olhava para ele e digitava o número, até completar todos os dígitos. Documento inválido, por favor digite o número do seu documento. Ela o fez novamente. E o resultado foi o mesmo. Documento inválido. E a ligação caiu. – Não deve ser esse – Disse para si mesma. Escolheu um cartão azul em que se podia ler “Cadastro de Pessoas Físicas”. Examinou e encontrou um número. Discou no telefone. Música. Uma voz gravada pedindo o número do documento. Apertou número por número com muito cuidado para não errar. Obrigado por ligar para a TT Telecom, sua ligação é muito importante para nós! Dizia a voz gravada. Para contratar um novo serviço, digite 1. Para receber a sua fatura, digite 3. Para manutenções já programadas, digite 5. Para outras opções, digite 0. E agora? O que fazer? Ficou confusa com as opções, não sabia qual deveria apertar. Escolheu o 0. Para dicas de como usar o anti-vírus ultramax, digite 2. Para configuração do proxy para jogos, digite 5. Para suporte do serviço banda larga ultramax, digite 8. Para voltar ao menu principal, digite 0. Dona Adriana começava a ficar nervosa em ser obrigada a lidar com aquilo. Não sabia o que tinha que apertar dessa vez. O que é anti-vírus? O que é proxy? O que é ultramax? O que é banda larga? Meu Deus como isso é difícil. O atendimento automático repetiu as opções. Ela decidiu pela opção que falava suporte, parecia a mais próxima do que precisava. Você escolheu a opção suporte banda larga, certifique-se de ter feito o procedimento padrão antes de receber o atendimento da nossa central. Você deve desligar o modem da tomada, aguardar um minuto e só então religar na tomada. Depois basta testar se a internet voltou a funcionar. Música. Dona Adriana ficou pensativa. Decidiu que tentaria isso. Desligou o telefone. Foi até o modem e seguindo o fio que saia de trás dele, encontrou a tomada. Desligou. Contou até sessenta. Religou. As luzes reacenderam. Sentou-se na cadeira, e clicou para abrir a internet. Não funcionou. – Merda – Uma irritada Dona Adriana praguejou. Voltou para o telefone. Discou. Documento. Música. Sua ligação é blá blá blá para nós. Opções. Mais opções. Procedimento padrão. Todos os nossos consultores estão ocupados no momento, aguarde na linha que já vamos lhe atender. Aguardou. O tempo ia passando. Um, cinco, vinte minutos. Sua irritação crescia. Sua pressão alta a preocupava. Olhou no telefone e constatou que já estava esperando por meia hora. Levantou e foi fazer seu chá, sem desgrudar a orelha do aparelho. Quase quarenta minutos depois, uma voz humana quebrou o mantra da voz automática. – Bom dia! Meu nome é Romilson, com quem eu falo? – Oi, é Adriana. – Em que posso ajudá-la, Adriana? – Minha internet não está funcionando. Não consigo mais falar com meu filho. Eu tô nervosa meu filho, por favor me ajude. Eu preciso falar com meu filho. – Tudo bem senhora, primeiro preciso saber qual é o número do seu documento. – Peraí meu filho. Está lá no sofá eu vou olhar. – Ok, senhora. No minuto seguinte ela falou o número. – Aguarde mais um momento enquanto verifico. – Tá bom, meu filho. Minutos passaram. – Só mais um momento, senhora. O sistema está lento hoje. Dona Adriana ouviu ele falar sistema e imaginou que era o nome de algum outro funcionário do local. Já estava sem paciência. Lembrou do filho, sentiu um arrepio. – Senhora, estou verificando e está tudo certo com sua internet. – Mas não está funcionando, meu filho. Como está certo, se não está funcionando? Por que eu ia te ligar, meu filho? – Calma, senhora. É o que o sistema diz. Internet operante. A senhora já realizou o procedimento padrão de desligar e ligar o modem? – Eu quero falar com esse sistema, manda ele vir aqui em casa ver se pega a internet, meu filho. Não está pegando. Já desliguei sim. Liguei e está lá piscando mas não funciona. – Senhora. O que eu posso fazer é agendar uma visita com do técnico em sua casa. – Tá bom, meu filho. Faça isso. – Aguarde um momento enquanto verifico a agenda dos técnicos, senhora. Minutos se passaram. – Aguarde mais um momento, senhora. O sistema está lento hoje. Pedimos desculpas. Mais minutos foram. – Temos um horário disponível para semana que vem, na quinta-feira, na parte da manhã. Vou marcar para a senhora, tudo bem? – Eu não posso esperar tudo isso. Meu deus. Eu preciso falar com meu filho. Veja bem, meu filho perdeu o celular dele. Ele mora na Europa e só consigo falar com ele pela minha internet. Por favor, me ajude. – Senhora, não há nada que eu possa fazer. Somente agendar a visita do técnico. As lágrimas rolavam no canto dos olhos de Dona Adriana. Ela tremia de nervos. Não conseguiria ter notícias do filho. O grasnado do corvo passou pela sua mente. Sentiu um aperto no coração. – Agenda para mim, então, meu filho. Se é só isso que você pode fazer por uma senhora idosa que está sofrendo. – Senhora, me desculpe. Eu só estou fazendo meu trabalho. Vou agendar para a senhora. – Eu estou nervosa, eu não sei se meu filho está bem – O choro agora afetava sua voz. – Só mais um momento senhora. O sistema está travado. Então a ligação caiu. Dona Adriana demorou quase três minutos para se dar conta disso. Quando percebeu, desligou o telefone, o colocou na mesinha, e desabou no sofá, nervosa e chorando. Acordou várias horas depois. Sentiu uma fisgada na costas. Havia dormido de qualquer jeito no sofá. Seu corpo já não aceitava bem quando isso acontecia. Levantou se escorando onde podia. Foi até a gaveta dos remédios e tomou dois analgésicos. A dor nas costas era imensa. Mas logo lhe veio Ricardo na mente e essa outra dor era pior. Não tinha notícias do filho. Lembrou do sonho com o corvo. Bicho maldito, o que será que significa? E o meu Ricardo. Meu Deus. E novamente chorou.


    Catarina entrou no prédio correndo, estava alguns minutos atrasada. Já tinham lhe chamado a atenção e a próxima vez poderia ser demitida por justa causa. Tirou uma alça e jogou a mochila na frente do peito. Abriu o zíper. Pegou seu crachá. Passou na roleta e entrou no corredor que levava até seu posto de trabalho. Todos os dias sua rotina era parecida. Acordava às cinco e meia da manhã e seguia para a feira – cada dia em um lugar diferente da cidade. Ajudava os pais feirantes a montar e vender as frutas e legumes até às onze horas. Dali, pegava um ônibus para seu trabalho numa central de atendimento. Devia entrar meio dia em ponto, mas dependia do local em que tinha sido a feira. As vezes atrasava. Almoço? Levava uma marmita, que esquentava logo antes de sair da barraca da feira, comia no ônibus sob olhares de reprovação. Trabalhava durantes seis horas com dois descansos de pouco mais de dez minutos cada. Às dezoito horas, corria novamente para pegar o ônibus, às dezenove começava sua aula no curso de Assistente Social. Era estressante. Era difícil. Mas faria qualquer coisa por seu sonho. Estava disposta a sofrer essa rotina destruidora para ter como pagar a mensalidade. Tudo para que um dia pudesse ajudar quem mais precisa. Iria valer a pena. O trabalho na central de atendimento era extenuante. Tinha que chegar, sentar e atender ligações. Uma atrás da outra. Dezenas. Só não chegava na casa das centenas porque o aparelho de trabalho era velho e lento. Tinha um supervisor nojento que passava caminhando atrás dela de vez em quando. Já havia notado que ele olhava e encarava sem qualquer pudor qualquer uma das mulheres que se vestisse com um mínimo decote ou uma roupa mais apertada. Nojentão era o apelido dele entre elas. Mas o chefe verdadeiro era aquele que se apresentava na tela a sua frente, o sistema. As ligações entravam pelo sistema, que tudo ouvia e tudo iria se lembrar. O que ela teria que dizer era descrito pelo sistema. Suas opções, limitadas pelo sistema. Deus do antigo testamento tinha menos poderes sobre um ser humano do que o sistema tinha sobre aqueles pobres funcionários da central de atendimento. Primeira ligação. Segunda. Terceira. O dia começou e as habituais baixarias também. Ligava gente que não sabia em que planeta estava, dúvidas totalmente fora de contexto. Pior ainda eram os pervertidos que queriam ouvir uma voz feminina enquanto praticavam nojeiras. De vez em quando alguém normal, que falava em tom normal, mantinha um diálogo que fazia sentido. Porém, nesses casos, tanto ela quanto a pessoa enfrentavam outro problema, o sistema. A ela só restava pedir calma, tentar explicar. Do outro lado, mesmo a mais calma das pessoas não se aguentava. Então vai tomar no cu, e desligavam. Doía muito, ela não tinha qualquer controle sobre a situação. Era comum que seus intervalos de dez minutos fossem sessões de choro. Não foi diferente quando recebeu uma ligação de uma senhora chamada Adriana Santana. – Bom dia. Com quem eu falo? Em que posso ajudar? – disse Catarina. – Oi, minha filha. Aqui quem está falando é Adriana. É o seguinte. Eu já liguei umas cinco vezes aí e ninguém resolve o meu problema. É que eu estou sem internet e eu preciso de internet para falar com o meu filho… – Tudo bem, senhora eu vou verifi…. – Foi cortada pela voz de Adriana, que continuava a falar e falar. – …ele perdeu o telefone e não mora aqui. Ele mora na Europa. Ele foi para trabalhar lá e está sem telefone e não consigo falar com ele. A minha vizinha, que é uma querida, me ajudou a instalar a internet de vocês aqui em casa e eu conseguia falar com o Ricardo no computador – A voz embargava ao lembrar do filho. – Senhora, vou verificar para a senhora, só preciso…. – …desculpe eu estou chorando de novo. Eu só choro desde que eu vi na televisão. Não sei se você viu. Teve um atentado. Morreu muita gente. É na cidade do meu filho. Eu estou sentindo um aperto no coração, eu estou sofrendo muito. Por favor, me ajude. – Senhora. Vou te ajudar. Preciso do número do seu documento para dar entrada no sistema. Dona Adriana respirou fundo e entregou os números. – Ok. Acessei o cadastro. Parece que está tudo normal. A senhora já tentou…. – Sim, minha filha, eu já desliguei e liguei várias vezes. Não funciona. – Então vamos agendar um técnico para ir na casa da senhora. Tudo bem? Vou ver se consigo um encaixe para não demorar. Estou abrindo a agenda. Só um minuto por favor. Dona Adriana tremia. Tinha dor nas costas. Dor de cabeça. Tremia. Lembrava de Ricardo e todas as dores eram multiplicadas. Enquanto esperava em silêncio ao telefone sentia o coração pulsando. Um bate, bate, bate desesperado. Como se a cada pulso a vontade do coração fosse de explodir. – Senhora. Temos um espaço para amanhã a tarde. Vou agendar para a senhora, tudo bem? – Tudo, minha filha. Muito obrigado. E desatou a chorar com soluços agudos. Catarina ouvia. Era a última ligação do seu turno e seu coração se apertou. Estava acostumada a sofrer ataques gratuitos por aquele telefone. Aguentava – pelo menos até chegar na pausa do choro. Mas ouvir aquela senhora, imaginar o desespero dela, era insuportável. Começou a chorar baixinho, colocou seu microfone no mudo. Depois de alguns segundos respirou fundo antes de voltar a falar. – Senhora. Vai ficar tudo bem, tá? Então as duas choraram juntas. Uma ouviu o choro da outra. Se compadeciam. O sofrimento humano é processado no interior dos corpos, mas ele vive fora deles. O sofrimento de Dona Adriana de algum modo se convertia em sinais que viajavam da sua casa e chegavam na central de atendimento. Catarina era aberta ao sofrimento alheio, e absorvia. Absorvia e sofria junto com Dona Adriana. – Você é um anjo. Eu quero que você venha aqui em casa um dia que eu te faço um chá e a gente conversa. Aliás, acho que vou fazer um agora para tentar me acalmar. Um grito generalizado na central de atendimento fez Catarina colocar o microfone no mudo novamente. Ergueu a cabeça e entendeu. O sistema havia travado pela terceira vez naquele dia. Na sua frente os dados de Adriana ainda estavam lá, mas tudo congelado. Não pode ajudar. – Senhora? Meu sistema travou. Não consegui realizar o agendamento. A senhora terá que ligar novamente depois. Nenhuma resposta veio do outro lado. Catarina esperou um pouco antes de desligar. Seu turno estava a cinco minutos do final. O endereço de Adriana ainda na tela. Lembrou das últimas palavras que ela havia lhe dito. Puxou a caneta que tinha no bolso graças ao trabalho na feira, e anotou na palma da mão o endereço. Saiu do prédio mas não se dirigiu ao ponto de ônibus como todos os dias. Ligou para o namorado. – O que você está fazendo agora? – Oi amor, estou saindo do trabalho, indo para casa. Por quê? – Pode vir me buscar? Eu preciso ir num lugar. Você me leva? – Ué. Não vai para a aula hoje? – Não. Tenho uma coisa mais importante para fazer. Em quinze minutos seu namorado chegou. Ela entrou no carro. – Nossa. Que cara é essa? O que aconteceu? – Perguntou ele. – Recebi uma ligação hoje. Uma senhorinha. Ela está desesperada. O filho mora em Paris e teve um atentado lá. Só que o único contato dos dois é pela internet e adivinha, a dela parou de funcionar. Eu falei que ia resolver isso para ela, o sistema travou. Quero ir para lá agora. – Mas…não é proibido você pegar o endereço de cliente? – É. E só consegui pegar porque o sistema estava travado. Ainda com o endereço dela na minha frente. O endereço é esse. – Sei onde fica. É perto. Você tem certeza disso? – Se eu tenho certeza? O sentido da minha vida é ajudar os outros. Você sabe disso. Essa mulher está sofrendo. Eu senti isso. Senti muito forte aqui dentro. Você não entende. – Calma. Calma. A gente vai. Chegaram até a rua. Passaram devagar pelas casas até encontrar o número trezentos e vinte e cinco. – É aqui – Disse ela. Estacionaram na calçada e desceram. Foram até o portão. Apertaram a campainha. Esperaram um pouco e ninguém apareceu. – Estou com um pressentimento ruim. Vou entrar. Olha, está sem cadeado no portão. – Está maluca? Já viemos até aqui, chamamos, não tem ninguém. Você quer invadir a casa da pessoa? – Então fica aí fora, eu vou entrar. – Ah, não vou te deixar fazer isso sozinha. Catarina abriu o portão e entrou, caminhou pela calçada em direção a porta da entrada. Bateu. – Adriana? Adriana? Ninguém apareceu. Ela meteu a mão na fechadura. Seu namorado estava visivelmente nervoso. Ela estava decidida. A porta estava destrancada. No momento em que empurrou a porta sentiu um cheiro forte. – É gás! Meu deus. Seu namorado procurou o interruptor de luz e levou um tapa de Catarina. Então ela colocou a manga da sua blusa no seu rosto e entrou na casa escura. O namorado foi atrás dela. Chegaram na primeira porta e viram uma senhora idosa desmaiada no chão, uma caixa de fósforos aberta com fósforos espalhados pelo chão. E uma chaleira ao lado do fogão. Ambos se olharam e rapidamente correram para ajudar Dona Adriana. Começaram a puxar ela pela cozinha e então ouviram um barulho. – Dona Adriana? A senhora está aí? A vizinha acabara de chegar de viagem, e logo que virou a esquina viu aquelas pessoas estranhas entrando na casa de Dona Adriana. Saiu do carro antes de entrar na sua garagem e foi lá ver quem eram. Ela deu um passo para dentro da porta, um cheiro forte de gás. Então viu dois vultos no corredor, na altura da porta da cozinha. Precisava ver quem eram. Acionou o interruptor de luz. Uma fagulha mínima entre o bocal e a lampada mal instalada foi suficiente para causar a explosão. Os corpos de Catarina e do namorado foram arremessados quase até a entrada da sala. O de Dona Adriana ficou esticado na porta da cozinha. Os três morreram instantaneamente com o impacto e com estilhaços dos balcões e do metal do fogão. A vizinha foi arremessada até o muro da casa, quebrou duas costelas. Os bombeiros chegaram e rapidamente controlaram o pequeno incêndio na cozinha. Deixaram os corpos esticados lá para o trabalho dos peritos. Estes chegaram quase uma hora depois da explosão e começaram a marcar os pontos de interesse e imaginar como se deu tudo ali. Havia o depoimento da vizinha, sobre pessoas estranhas. Mas essas duas pessoas também estavam mortas no final do corredor. – Olha isso aqui – A perito puxava um objeto debaixo da estante e segurava dependurado, chamando o policial para ver. O policial se aproximou do celular de Catarina. A tela estava quebrada e piscava indo e voltando entre alguns aplicativos. Por um momento foi possível ver uma página da internet que estava aberta no aparelho. O policial forçou a vista para ler.

    Sonhar com Corvo significa que você irá ajudar ou será ajudada por alguém. Quanto mais alto o grasnado do pássaro, maior é a urgência da situação. Em outros casos….(o resto da tela estava ilegível).

    – Corvo? A perito de de ombros. O policial então deu alguns passos. Se conteve antes de sair pela porta, virou em direção a perito. – Será que demora? – Demora sim, isso aqui está uma bagunça. Temos esses dois estranhos, segundo a vizinha. É bom catalogar tudinho. – Ah, tá bem. É que eu preciso passar tudo para o sistema. E meu turno acaba daqui meia hora. – Melhor avisar sua mulher que hoje você vai se atrasar.

    2018-07-18 11:00:19

  • Cronica Apenas Para Entregar

    Eu preciso escrever a minha crônica que vai sair amanhã bem cedo no jornal. Passar a limpo na máquina de escrever, dobrar o papel e enfiar no envelope. Ainda deixar até às 20 horas na portaria do número 26 na Travessa dos Apressados.

    Eu que escrevo sempre um dia antes, para com um dia de folga não ser espremido pelo prazo, não escrevi ontem. Valeu a pena, é claro. Senão jamais teria contado e ouvido dezenas de histórias regadas na cerveja lá na Rua dos Pescadores.

    Como pude não repor o meu estoque de crônicas de besteiras? Que bobagem ter passado aquela semana longe no mês passado, só para acompanhar de perto aquelas palestras daquelas pessoas naquele lugar. E toda noite seguia para cá ou para lá com aquelas pessoas. Teve até um dia que consegui receber um convite para palestrar no ano que vem. Vai ser noutra cidade, numa tal Avenida das Baboseiras.

    Mais um prazo! Submeter aos juízes do congresso algum destes textos mais compridos e sérios meus. O que vira livro. Aquele livro da capa azul com escrito em vermelho, me falaram, vai dar um belo de um discurso político. Capa feia, mas estava ocupado para escolher e quando abri a carta do editor, já tinha se esvaído o prazo, fiquei sem escolha. Até fui na casa dele ver se dava para trocar, mas acabei só fazendo uma visita de cortesia, azar da capa, melhor brincar com os cachorros no gramado da frente, na sossegada Rua Tranquila.

    Amanhã eu juro que escrevo várias. A de hoje eu improviso. Eu prometo, nessa de hoje, uma lista das próximas. Vou começar na loiraça que conquistou o meu amigo só pra andar de carro novo, que era da firma, que ele devolveu, que ela sumiu. Me contaram na Rua dos Pescadores. Imaginarei os olhares entediados quando eu disser abobrinha na Avenida das Baboseiras. E não perdem por esperar quando eu contar a grande aventura dos cachorros do meu editor antes de serem adotados e mudarem para a Rua Tranquila.

    Ponto final. Tiro o papel. Dobro e coloco no envelope. Agora para entregar é só sair aqui de casa, que fica no Beco sem Saída.

    2016-11-07 07:36:53

  • Fuga De Gaia

    Uma pequenina mancha apareceu no céu, cientistas não sabiam de onde havia surgido e o que era aquilo. Aqueles que descobriram se deram ao trabalho de medir e calcular o deslocamento. Era uma massa escura, viajando rápido, a princípio muito longe. Porém, aquilo vinho em direção à Terra e se mantivesse o curso e velocidade, iria atingir nosso planeta dentro de 15 anos. Publicaram os estudos, receberam muita atenção na comunidade científica, e depois na mídia: estava decretado o fim do mundo. Morreríamos todos, atingidos por alguma coisa que ninguém sabia o que era.

    5 anos depois, muitas vezes maior que seu tamanho quando observada pela primeira vez, Gaia, como foi apelidada a coisa que vinha, já começava a afetar o dia a dia dos seres humanos. Apesar de ser um objeto cosmicamente pequeno, Gaia perturbou o campo gravitacional de estrelas, corpos ermos e poeira galática. Inclusive a luz por sua volta já sofria distorções facilmente visíveis. Gaia já era observável a olho nu.

    8 anos se passaram. Gaia é um tampão enorme no céu. Alterou os dias, fez o Sol desaparecer por longas horas. Em latitudes avançadas, mal se via a luz do dia. Além disso, Júpiter, apesar de maior, havia sido severamente deslocado, e sentia-se os efeitos em todo o tipo de equipamento na Terra. O equilíbrio no sistema solar tinha chego a um fim. A política humana estava um caos. Os países fecharam suas fronteiras. Cultos religiosos disputavam fieis a tiros, literalmente. A Terra havia se tornado o inferno. Poucos que residiam em países capazes de segurar suas populações com mãos fortes, ainda tentavam levar suas vidas, agora todas ainda mais sem sentido. As taxas de natalidade foram a quase zero, os crimes dispararam, as mortes por overdose superavam todas as outras causas como doenças do coração e acidentes de carro.

    9 anos se foram. Já se sabia que Gaia era um volume massivo de matéria escura, que havia aparecido sem motivo no coração de uma galáxia distante, uma das maiores até então conhecidas. Estava pronta a primeira missão de colonização espacial. Os seres humanos ainda lutavam pela sobrevivência. Dezenas de foguetes iriam levar ao espaço as mais diversas combinações de populações e experimentos que, torciam todos, seriam a base para a vida no espaço. Os países mais ricos tinham duas frentes: se defender na guerra sangrenta generalizada entre as nações; cooperar e enviar tanta gente quanto possível no espaço, rumo ao completo desconhecido. Calculava-se que a janela para lançamentos acabaria dentro de mais 2 anos, aos 11 anos do descobrimento de Gaia, porque nesse ponto o objeto já estaria perto o suficiente para tirar a Terra da sua translação, e possivelmente nos lançar rumo ao nosso próprio Sol.

    11 anos. Gaia cobre o céu. É impossível sobreviver a céu aberto por mais de duas horas sem roupa especial. A população humana foi reduzida a algumas dezenas de milhões de pessoas, todas escondidas sob bunkers profundos — a maioria talvez já tivesse morrido, pois o planeta tinha se tornado um corpo espacial instável, terremotos ocorriam em noventa por cento do dia, e quase todo o planeta era um inferno escaldado pelo sol, ou era uma completa nevasca que matava tudo. No total, haviam escapado da Terra cerca de 200 mil pessoas. Políticos de primeira linha, esportistas destacados, gênios, cientistas, bilionários e muitos militares que haviam controlado o planeta em sua derrocada.

    Assim se deu a Fuga de Gaia. A espécie fora reduzida de sete bilhões para apenas 200 mil pessoas espalhadas em centenas de grandes naves espaciais, todas vagando sem destino.

    A Nave Renascença

    Roger Pastophoros fazia parte da equipe que partiu em uma das primeiras naves que decolaram da Terra, sem qualquer esperança de voltar, e com pouquíssimas chances de sobrevivência. A Renascença era um projeto antigo desenvolvido em conjunto entre Estados Unidos e União Soviética na década de 80, durante a Guerra Fria. Os líderes das duas potências sabiam da iminência de uma Guerra Nuclear, e decidiram sentar em uma mesa de negociações oculta. Nascia um projeto ambicioso: uma espaço nave que pudesse ser enviada para exploração espacial sem que jamais precisasse voltar ao planeta Terra. Era o plano dos líderes de ambos os lados, salvar as próprias peles no caso de que os mesmos decidissem acabar com o Planeta, paradoxal, mas compreensível.

    Roger levantou do seu breve sono e antes mesmo de abrir os olhos por completo já estava no centro de comando da Renascença.

    • E hoje? Alguma coisa?

    <!-- --> – [O mesmo de ontem, senhor. Completo e absoluto silêncio, retirando é claro, o zumbido ensurdecedor de Gaia.]

    Quem respondeu foi Caterina, chefe da ponte de controle. Nascida na Rússia, havia sido treinada desde pequena para missões espaciais, seu conhecimento agora parecia profético. Diferente de Roger que era apenas um soldado de alta patente do Exército Europeu, Caterina tinha status de gênio.

    Observando pela pequena janela redonda, Roger desligou seus pensamentos e fixou os olhos em uma estrela muito brilhante distante no infinito. A contemplação só parou quando alguém o interrompeu, pedindo que ajudasse a carregar umas caixas até o laboratório. Suspirou e foi. Caterina parou por um instante o que fazia para observar Roger saindo pela porta automática, e sem qualquer mudança de expressão, voltou a conversar com o computador.

    O último ser humano da Terra

    Após todos os outros humanos terem morrido nos mais complexos e parafernalhados bunkers espalhados pelo Planeta, Xi Pin Mei ainda estava vivo. Desde que ouvira sobre o fim do mundo, escolheu sair do seu emprego numa linha de montagem de celulares de Shenzhen para seguir uma antiga lenda que seu avô lhe contava quando menino: havia uma caverna no interior da China, a maior de todas as cavernas do Planeta, que levava até outro mundo. Dois anos após a Primeira Observação de Gaia, Xi havia chego no local indicado por seu avô. Era uma cidade turística, com seus enormes conjuntos de cavernas, na base do Himalaia. Seguindo as palavras trêmulas que havia ouvido quando tinha 17 anos e seu avô estava no leito de morte, ele foi longe das cavernas conhecidas, por um caminho que não se percebia como explorado, a não ser por um ou outro dejeto largado no chão. Deu de encontro a uma caverna de entrada pequena, havia chego.

    Caminhava e acampava, havia levado muita bateria de lanterna, querosene, comida enlatada. Calculava que seus recursos, se bem usados, lhe fariam viver os 10 anos de vida restante a todos. E viveu. 12 anos após o surgimento de Gaia, ele era o último homem vivo da Terra. Nem fazia ideia, até porque não tinha chego no final da caverna. Estava muito doente, o que lhe impossibilitava de seguir. Montou acampamento numa área grande, que tinha um pequeno lago de água potável, sob gigantescas estalactites que caíam uma vez ou outra, sob o chacoalhar fraco porém perene causado pelos terremotos. Xi tinha consigo apenas alguns livros, no momento em que a última vida humana se esvaiu do Planeta, lia Confúcio, lia uma frase que representava a glória daqueles que conseguiram levar a vida a diante, no espaço longe dalí: “Nossa maior glória não está em jamais cair, mas em levantar a cada queda”.

    2016-09-19 07:59:05

  • As Nuvens Dele

    ![NUVES]

    Vou contar um fato estranho que aconteceu na minha vida na data de 27 de maio do ano passado. Eram por volta de onze horas da manhã quando recebi um telefonema em meu aparelho móvel, era o Carlos convidando-me para almoçar, minha esposa estava viajando na ocasião, e então aceitei o convite. Carlos se tornou meu sócio há oito anos quando me convidou para abrir uma empresa de venda de nuvens personalizadas. sabia sobre o assunto e tinha uma grana, estava em igualdade com Carlos e então apostamos na idéia e abrimos a empresa. Um bom trabalho de relacionamento fez a empresa decolar em pouco mais de dois anos de operação. Vendíamos nuvens para todo tipo de evento. Nevoeiros para parques de diversão, stratus coloridos para raves, cirrus para feriados nacionais, etc. A empresa era um sucesso e resolvemos abrir um modelo de franquias que rapidamente teve unidades instaladas nos cinco continentes. Cheguei no restaurante, encontrei Carlos e cumprimentei de longe, sua face estava azeda o que me fez por um segundo imaginar o trabalho das glândulas salivares do Carlos reagindo a algum aperitivo de gosto forte, mas não era isso. Após uma conversa quebra-gelo sobre a rodada do campeonato brasileiro de Rolimã do dia anterior, meu sócio tomou um bom gole da cerveja, inspirou profudamente e revelou: tenho algo que quero que ouça. Tirou um gravador do bolso e pressionou uma tecla para ativar a saída do som, debrucei-me sobre a mesa para prestar atenção:

    \”sacolé mermão, aqui é Deus e eu tenho um bisu pra passar pra ti. Tu para de brincar com minhas nuvens cara, pode mexer na terra, plantar, colher, clonar animais, criar novas doenças, manipular a porra do DNA mas não mexe com as minhas nuvens. \”

    Eu ri. Mas vendo que Carlos não arredou a posição séria logo parei e perguntei que porra era aquela. E lá veio a explicação do meu sócio. Segundo ele, a ligação tinha sido recebida alguns dias antes. Havia desconsiderado o assunto por três tentativas até que o outro lado da linha falou que poderia provar que era Deus. Iria fazer sortear os números 2,4,8,19,30,58 no concurso da Mega Sena. E funcionou? Perguntei para ele. \”Veja, saiu 2,4,8,18,30,58, uma Quina, o que já é foda de acertar\”. Aí comecei a ficar cabreiro com o fato que estava sucedendo. \”Tem mais, Deus falou que realizaria um pedido nosso em troca de pararmos com o negócio de mexer nas nuvens dele, fiquei de dar um toque quando tivesse decidido algo\”. Conversamos por longas duas horas naquele restaurante até chegar a conclusão que era melhor não desafiar alguém que acertava na quina da Mega Sena jogando apenas seis números secos. Carlos ligou pra Deus e pediu milhões de dólares em nossas contas bancárias, Deus providenciou. Fechamos a empresa de nuvens, e abrimos uma Igreja. __ foto: D\’arcy Norman on flickr.

    2009-07-31T05:28:24.000Z

  • O Estagiario E A Ged

    Arquivo da
vida

    O professor está pedindo, então vou escrever um relatório contando minha história no estágio. É uma história complicada, mas que no fim deu tudo certo. Sou aluno de Administração de Empresas pela FAGENPE (Faculdades Genéricas de Pelotas), estou a ponto de concluir meu curso. Na metade do segundo ano a união da necessidade de dinheiro com a possibilidade de adquirir experiência me conduziu a ser um cadidato na vaga de emprego numa grande empresa do ramo dos calçados. O emprego era uma merda mas o dinheiro que eu conseguia ajudava a pagar os remédios da minha avó que sofria naquela ocasião com dores dilacerantes nas tripas causadas por alguns tumores malígnos. Na entrevista fui obrigado a escrever uma redação e a responder várias perguntas para uma psicóloga vesga, ressalto o problema com os olhos da psicóloga para que todos tenham ideia do esforço dispendido por mim para olhá-la nos olhos, como recomendou o Max no Fantástico na semana anterior. Éramos oito candidatos dos quais apenas eu e a menina gostosinha passamos. A gostosinha foi conduzida para ocupar um cargo como secretária de um dos executivos, fato estranho já que na oferta de emprego não constava tal vaga. Eu, fui para a vaga de Auxiliar de Escritório. Fui bem recebido por todos os funcionários do escritório. Eram dezoito pessoas trabalhando com as vendas, com as compras, marketing e outros departamentos menos importantes. Fiquei chateado por nunca terem perguntado meu nome, chamaram-me na primeira vez de Binho, e como Binho fiquei. Comecei carregando papéis, buscando clips borracha cd virgem elástico caneta post-it envelope grampos e ajudando no picoteamento de papel. Não era bem o que eu buscava, mas pensava na gorda bolsa de ajuda de R\$570+VT por 6h de trabalho, e então me confortava. Depois de uns meses foram me cedendo tarefas mais importantes e chegou um momento que praticamente me consolidei em uma posição. Era responsável por organizar os milhares de documentos dos arquivos da empresa. Muita responsabilidade, gostava da sensação de ser confiado. Quem lembra de arquivo geralmente arremete a algo estacionado, entretanto comigo era a correria todo o dia. Não passava meia hora sem que alguém discasse para meu ramal: \”Binho tu me vê o contrato com os china, mãs venha rápido guri, tô no telefone com os caras\”. E lá eu ia correndo. Era trabalhoso, mas eu estava feliz com aquilo por enquanto. Nem formado estava e já ganhando R\$650 (aumento!) com benefícios, quem é que tem uma oportunidade dessas? Tudo estava na rotina até que um dia meu mundo sofreu o choque de um asteróide. O seu Genival do Vendas me chamou na sua sala e proferiu sem muitas delongas: \”implantamos um sistema aí, não precisamos mais de ti pra arrumar os documentos. Vamos descartar tudo, sistema aí chama géde, agora nego vai digitar no computador e ter o documento na hora, não precisa mais te ligar\”. Senti a necessidade de puxar mais oxigênio, senti os batimentos do meu coração e eles aumentavam no galope, pensei na minha vózinha morimbunda, não teria dinheiro pra comprar os remédios dela, minha vista escureceu. Acordei com o Paulo asfixiando-me com um pano a cheirar vinagre, afastei o braço dele e me coloquei sentado com os braços apoiados no joelho e cabeça baixa. \”Me deixa eu recuperar o fôlego aqui Paulo, depois pego as minhas coisas e vou embora\”. \”Bah! Embora pra quê, guri? Não aguenta um desmaiozinho?\”. \”Eu fui demitido…\”. \”Ah, eu entendo. Tu não tá na rua não. Vão é te mudar de função Binho véio\”. Olhei pra ele, e abracei-o emocionado. \”Me larga seu tricolor fedido!\”. Sou colorado, mas nem fiquei incomodado, meu emprego estava assegurado. Depois daquela confusão tudo melhorou para mim aqui na empresa, perguntaram e ficaram sabendo que meu nome é Valdinei que torço pro colorado, e até me convidaram pra jogar truco nos churrascos da empresa. Mas o melhor foi ter minha função alterada: passei a ser o responsável por mapear os metadados, escanear, e inserir as NF\’s no sistema. Estou pra ser efetivado assim que concluir meu curso, o que vai quase dobrar meu salário. Pena que a vovó acabou morrendo. Se bem que agora posso gastar a grana do remédio da véia com putaria. __ foto: eric.acevedo.

    2009-07-27T08:59:24.000Z

  • Meu Reinado Por Uma Festa

    Família
Real

    A Família Real

    Em 2002 o Centro Acadêmico de Ciências Sociais sofreu um golpe de estado e passou a chamar-se Centro Acadêmico Hugo Chaves. Lembro dos alunos estourando o cadeado Papaiz e invadindo a sala que contava na época com um PS One com 4 jogos e dois controles, uma tv Toshiba de 20 polegadas, um computador da marca Positivo com processador Sempron, uma mesa de ferro daquelas usadas em barecos próximos da reitoria, um sofá com o encosto do assento do meio quebrado e um mural confeccionado em isopor e emoldurado com alumínio. O Presidente, o Primeiro Secretário, o Secretário de Esportes, a Secretária de Eventos, o Secretário de Comunicação, o Secretário de Assuntos Políticos e os apoiadores nada puderam fazer contra as vinte pessoas que insurgiram e derrubaram o governo atual do Centro Acadêmico que tinha sido re-eleito por uma pequena margem de votos (120 contra 110 da oposição). A revolução estava a toda, armados com placas com dizeres de liberdade e rostos de personalidades políticas paradoxalmente relacionadas (como Guevara e Dalai), os alunos ouviram discursos sobre a nova relação que o Centro Acadêmico teria com o Reitor entre outras promessas. E triunfante, o líder que tinha seu cabelo comprido e encaracolado vibrando ao gosto do vento gelado que entrava pelas janelas, informou sobre a mudança do nome do CA. Agora chamar-se-ia Centro Acadêmico Hugo Chaves. Pois bem, nessa época eu era aluno do terceiro ano e estava alheio a todas as movimentações político-acadêmicas. Porém, aquele golpe me fez repensar meu papel. Diante dos acontecimentos decidi me arriscar com uns colegas e questionar o golpe realizado por aqueles malucos do segundo ano. Foi o que fiz no dia da Reunião da Pró-reitoria responsável. Dizia que aquele golpe jamais era válido pois feria os princípios do ensino, pesquisa e extensão da nossa Universidade, os servidores administrativos concordaram e me inscreveram como possível líder do novo governo do CA Hugo Chaves. Uma vez empossado resolvi clamar por um recurso esquecido nas Leis relacionadas: \”instituição de forma substantiva de um novo sistema de governo\”. A minha proposta foi aprovada (e jamais ninguém sabera o real motivo. Esta verdade é que eu comi a professora mais conhecida do departamento e tinha algumas fotos dela nua. Um pouco de pressão foi suficiente para que ela encontrasse jeito de convencer o resto do quorum político necessário para a aprovação). Agora o Centro Acadêmico Hugo Chaves era conduzido por um sistema governamental monárquico no qual eu e minha namorada éramos a Família Real. Um adendo importante é contar que o nome do CA permaneceu sendo aquele em homenagem ao líder populista da Venezuela. Organizamos diversas festas com cerveja barata para conseguir o apoio ainda mais incondicional dos súditos. Após alguns meses já não havia um estudante sequer a questionar nossas atitudes. Éramos realmente uma família Real. Entretanto, o cidadão que um dia fora o Presidente do CA estava insatisfeito e eu percebi isso quando ele se recusou a ir à festa que organizamos na Chácara do Buraco. Conversei com ele e concedi o título extraordinário de Primeiro Príncipe do Centro Acadêmico Hugo Chaves. Na terça-feira ele acabou aparecendo no intervalo das aulas para cumprir a função que lhe fosse demandada. Pois bem, vós que sois meu herdeiro direto contatai a distribuidora de bebidas Rei das Bebidas em meu nome e negociai cerveja barata para a festa vindoura. Seis meses e meu Reinado era absoluto. Eu mantinha os súditos felizes provendo-lhes álcool para suportarem a carga de estudos, eles permaneciam inrevoltosos contra minha pessoa Real. E então veio o fato que derrubou o Reino do Centro Acadêmico Hugo Chaves. Estava rolando uma grande festa, a maior que já havíamos produzido. Esta contava com a participação dos cursos de Filosofia, Economia, Direito, Odontologia e Engenharia Florestal. Minha diplomacia era conhecida por todos, e num golpe de unificação dos povos concebi este evento reunindo filósofos, comunistas, capitalistas, dentistas e carpinteiros. Foi um final de semana de festa acampado na Fazenda Vinho Tinto, foi a maior festa que aquela Universidade já viu. Na sexta a noite o pessoal chegou e nós tínhamos uma equipe vestida com camisas portadoras do rótulo Staff. O Staff ajudou a assentar os comunistas, fazer check-in dos capitalistas, marcar consultas com as dentistas, e foi ajudado pelos carpinteiros a construir uma fogueira. Os filósofos organizaram-se e ficaram ao relento. Providenciamos alguns cobertores para eles e a possibilidade de emprestar barracas e colchonetes. Quando o relógio marcou meia-noite, a banda Aqui Com Tudo subiu ao palco, o pessoal se juntou próximo do palco e da fogueira. E antes deles começarem a cantar \”Menina To Contigo Nessa Noite Fria\” discursei para meus súditos e o pessoal além-Reino. Palavras de Ordem, conclamei o evento como um Festival, instaurei a Liberdade, concedi créditos para a Razão e enquanto todos deliravam com palmas, assovios e risadas bem sonorizadas saí do palco. Meu fade-out deu início ao fade-in e então já se ouvia: \”quando estou contigo / menina nesta noite fria / quero amar sua boca / suas coxas e sua amiga\”. Rei. Chamou a minha namorada. E não lembro de muita coisa depois disso. Acordei por volta das 17h e já havia movimentação das pessoas no palco e em pequenos grupos reunidos como feudos espalhados pela área da festa na fazenda. Como um pai orgulhoso do filho, tirei fotos para colocar no Blog Real do CA Hugo Chaves. Então a noite de sábado foi parecida com a do dia anterior. Tivemos outra banda de sucesso entre os súditos, e diversão até o grande churrasco de domingo. O Primeiro Príncipe e sua equipe estavam servindo a carne do churrasco de domingo quando o som foi desligado e ouvi sirenes. Lembro muito bem da cena, um cidadão caminhando a passos rápidos em minha direção com um papel na mão. Quando chegou indagou se eu era o senhor Leandro Roberto Silveira da Penha, vulgo Rei Leandrinho. Afirmei e meus braços foram jogados para uma região nas costas na qual nunca havia encostado os dedos e lá permaneceram juntos. O senhor está preso, senhor Leandro Roberto, por tráfico de drogas. A festa acabou na mesma hora. Fui para a delegacia, respondi processo e peguei seis meses de trabalho comunitário. Diziam que mesmo não sendo traficante havia facilitado o tráfico e o uso dos entorpecentes. A Rainha me largou e o Centro Acadêmico teve seu nome e regime substituído, agora era Republicano e chamava-se Centro Acadêmico de Ciências Sociais Marx & Weber. A vergonha era tanta que acabei por desistir do curso. Acabara meu Reino, acabara minha vida acadêmica. Fui deposto pela Polícia Federal. __ Foto: lewis chaplin.

    2009-07-21T18:53:21.000Z

  • Vende Se Almas A Preco De Banana

    ![Loja de Almas]

    Vou abrir minha loja no shopping novo. Tem certeza de que vender isso daí é permitido? Tenho, até consegui que a prefeitura especificasse a minha atividade de maneira a encaixar no alvará: Comércio de artefatos religiosos, objetos de decoração e lazer. Mas e será que vai vender bem? Digo, é um comércio novo e tal, tem todo aquele risco, ainda mais montando uma loja no shopping. Para de bobagem cara, vou vender pelo menos umas cem delas por dia, isso no começo da empreitada. Já tenho o projeto da loja, os mostruários de LCD estão encomendados, nota fiscal, tudinho. É abrir a loja e faturar.

    **

    Abriu a Loja de Almas na inauguração do novo shopping. E foi destaque nos principais veículos de notícias. Até uma ponta no principal tele-jornal do país. No momento alto da reportagem Rafael falava com orgulho da sua idéia. Nosso mundo é rápido e dinâmico, ser apenas uma pessoa não é suficiente para sermos felizes, precisamos experimentar outras almas de modo a expandir nossa visão de mundo. 322 almas tiveram saída no primeiro dia da Loja de Almas tanto que o dono disse ao gerente Corra avisar a fábrica! Precisamos de mais almas urgentemente! Uma alma em especial teve a venda saboreada, Alma de Karol Wojtyla, pelo expressivo valor de R\$12999,99. Manifestações radicais aconteceram. Certa tarde de um dia tosco dois fanáticos religiosos da igreja Amo Deus quebraram boa parte das telas de LCD que exibiam ilustrações e textos acerca das almas. Foi falha da segurança do shopping e assim quem pagou pelo prejuízo foi a empresa terceirizada de segurança. Depois mais dois ataques semelhantes aconteceram e a prosperidade da Loja de Almas começou a intimidar-se. Nada que o dono não desse conta, já esperava por isso, ficou puto quando lhe lacraram a loja por decisão judicial que dizia algo no tocante a cunho moral. Recorreu e conseguiu abrir novamente a Loja de Almas. Nada que uma Alma de Hitler presenteada à um juíz não desse conta. Apenas trezentos dias se foram antes da inauguração da trigésima oitava franquia da Loja de Almas. Rafael conseguiu vender tantas almas que passou a doar algumas para instituições de Apoio as Pessoas com Distúrbios de Identidade. ******* Talvez continue. // Escrito em abril de 2008, estava suspenso porque não tem um fim, resolvi publicar porque não consegui pensar em um fim (e dia primeiro é interessante publicar coisa diferente). O estilo do texto tenta imitar parte da forma de escrita de Saramago.

    2009-01-01T09:00:35.000Z

  • A Ponte

    ::: Desde os tempos remotos o ser humano tenta entender como tudo é tudo, e num determinado momento chega um exemplar da espécie humana em uma ponte no meio de lugar algum.

    Ponte simples de madeira com cipós, parecia firme e segura a ponto de aguentar uma mula na travessia. Mas o humano em questão – chamaremos este exemplar da espécie de José – José, travou as pernas ao chegar à entrada, deu passos laterais e posicionou-se a observar o comportamento da ponte.

    Passaram-se dias e vimos que José conseguiu uma barraca, um fogareiro e um pouco de comida, talvez com os que passam a ponte diariamente, poucos, em silêncio, carregando coisas. Teria alguém ficado com pena da imagem daquele semelhante que estava sem-teto, ou ele teria dinheiro pelo qual trocou a barraca, os mantimentos e o pequeno fogão? Avançamos algumas dezenas de dias.

    José agora tinha um caderno, anotações de todos os tipos, inclusive uns desenhos que podíamos interpretar como modelos da ponte. Sol, chuva, vento, podíamos ler palavras relacionadas ao tempo no pé desta folha. Havia também uma espécie de plano no canto da barraca, debaixo de algumas pedras todas de tamanho semelhante, o que José pretendia?

    Chegamos bem cedo para não perder a eventual execução do plano de José. Como previsto, pegou o papel, que supomos ser a teoria da prática que seria executada, para, quem sabe, atravessar a ponte. José caminhou com aparência confiante até a beirada, esperou a mulher terminar de atravessar e começou a atirar pedras em locais distintos do trecho de travessia. Notável pontaria, as pedras colocaram-se simétricas meio para cá e para lá. E finalmente o momento em que esperávamos desde que nos postamos a observar José: a travessia.

    Um pé, depois o outro. Dentro da ponte estava José, que balançou no balanço da ponte. E caminhou lentamente. Saboreou cada passo e cada centímetro cúbico de ar que lhe escorregava a face e também olhou para baixo, sem, no entanto, sentir náuseas, e por tudo que esperou, saboreou como ninguém a travessia, e vale destacar que deixou seu plano voar das mãos com destino incerto.

    Próximo do meio da ponte, José viu que lá vinha uma mulher e sua mula. Seu estômago se fez era glacial, seu sangue ferveu, o coração não aguentaria, pensou ele. Olhou para o plano voando longe, tinha uma alternativa teorizada a respeito, talvez, precisava lembrar o que a situação demandava, não poderia apenas voltar, estava em dúvida no que resultaria tal ação, isso estava estampado na sua face desesperada. A mulher havia chegado à frente dele e falava algo inaudível. José fez uma pequena aproximação do cipó da lateral, a mulher puxou a mula que passou raspando no pobre medroso. Estava novamente no caminho como antes do incidente e resolveu continuar os passos.

    Encontrou o fim da ponte e teve dúvidas para sair dela. Outra mulher poderia aparecer com sua mula, pensou nisso e firmou seus pés na terra do outro lado da ponte. Fez a travessia, José conseguiu, e ficamos orgulhosos da conquista de um ser humano qualquer em lugar algum. Fomos nos afastando enquanto José apreciava o outro lado. O tempo desenrolou rápido, pois já não tínhamos interesse em fatos breves.

    A surpresa acometeu-nos quando olhamos por um último instante para José, estava voltando para a saída da ponte, agora lhe era entrada. Pôs os pés a passar madeira a madeira, chegou à sua barraca.

    Por dias, José tramava algo em seu caderno. Mas não nos restava tempo para cuidar desta missão, era outro desafio deste ser humano que cabe a outrem cuidar. Tchau José.

    Após cinquenta anos uma brecha permitiu uma visita ao local da ponte. Muitos seres humanos lá estavam a deslocar-se entre prédios do lado de cá e de lá. A ponte agora era feita de pedras e no local da barraca de José havia uma grande casa. Estava José dentro dela a tratar com outros homens de negócios referente a melhoramentos na ponte. Segurava um caderno aberto nas últimas folhas, aquele velho caderno que havíamos acompanhado José a escrever, e podíamos ler algum plano, e concluímos o que realmente foi a tarefa de José naquele local, naquela ponte.

    José levou centenas de dias para estudar a ponte, copiou um trecho da sua lista de coisas a serem checadas naquele papel que carregou na primeira travessia, entendeu todo o funcionamento daquela remota região de lugar algum, escreveu no seu caderno planos para construir uma grande cidade em volta da ponte, o fez por cinquenta anos. Sabíamos que José faria algo da sua vida, sabiamos que naquela barraca José esperava para fazer alguma coisa, mas jamais pudemos imaginar, sequer propor, que este humano poderia, ter sonhos maiores do que si próprio.

    créditos das imagens: tuppus, Gaetan :::

    2008-10-20T19:38:05.000Z

  • Registro Boletim Da Primeira Acao

    ![Simbolo Plano Ideal] de: Administração b0-0-2 para: Ministério Cinco Boletim \”ALIAS\” x002-b48 de 15 de agosto de 2085 Aliados postem-se ao meu lado, chegamos ao temído futuro onde a revolta aconteceria. Estamos com todos os ministérios trabalhando para encontrar maneira que seja para interromper os processos que vêm tomando conta dos nossos sistemas integrados. Não esperávamos tal ação neste momento, pairavamos sob aparente estabilidade entre as divisões, mas os fatos acontecem quando menos esperamos, temos que agir. # Ministro da Defesa Tecnológica: ative os firewalls. # Ministro da Administração Metropolitana: disponha tropas para controle da população. # Ministério da Privacidade a todo vapor. Convoquem os reservistas de controle. Concessões limitadas. Esta é uma revolução que não tem líder, os núcleos são independentes e estão por toda parte. A cada um presente será delegada uma sala, dela vocês terão meios de comunicar-se com seus respectivos departamentos e repartições. Ninguém está autorizado a sair. Esta é a primeira ação de controle. Cooperem.

    O registro descrito acima foi encontrado meio a ruínas que estão sendo analisadas no 3ºLaboratório novo-MUNDO de investigação do Controle da Revolução. Foi encontrado, mais precisamente, no antigo setor b48, hoje terra livre. A perfeição do registro deve-se às proteções ambientais impostas ao local, dois anos após. Nele temos a data exata do início da campanha do Controle da Revolução, que deu origem ao Plano Ideal.

    2006-04-21T00:03:22.000Z